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Veículos eléctricos chineses conquistam espaço nos países de língua portuguesa
Tempo de liberação:2025-11-10
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A estratégia das marcas chinesas tem vindo a evoluir, passando da simples exportação de veículos para uma participação directa dos países lusófonos na cadeia de produção de valor

Uma mudança silenciosa tem vindo a despontar, ao longo dos últimos anos, nas estradas dos países de língua portuguesa: a penetração crescente de veículos eléctricos de origem chinesa. Estimulado pelo apetite local por formas de mobilidade mais verdes e pela elevada competitividade das marcas chinesas, este fenómeno – que se tem vindo a verificar de forma mais expressiva no Brasil e em Portugal, com países africanos de expressão portuguesa, como Angola, a surgirem como novas frentes de crescimento – apresenta-se como uma tendência de futuro.

 

O panorama mundial da mobilidade eléctrica tem vindo a ser redefinido pela China. O país afirma-se cada vez mais como a maior base mundial de produção e venda de veículos eléctricos.

 

De acordo com dados da Agência Internacional de Energia (AIE), no ano passado, foram comercializados mais de 17 milhões de veículos eléctricos novos a nível internacional – incluindo eléctricos a bateria (também conhecidos como “BEV”, da sigla em inglês) e híbridos “plug-in” (chamados de “PHEV”) –, o equivalente a uma quota de mercado superior a 20 por cento. A China liderou, de forma destacada, o ranking por nações: um em cada dois novos veículos comercializados no país em 2024 era eléctrico, o equivalente a mais de 11 milhões de unidades vendidas. A AIE estima que, actualmente, um décimo dos veículos nas estradas chinesas já seja movido a electricidade, incluindo híbridos “plug-in”.

 

A maturidade alcançada pelo sector na China traduz-se em mais do que vendas: tem reflexo no que toca à capacidade de inovação tecnológica por parte das marcas locais, assim como em relação à integração de valor acrescentado nas respectivas cadeias de produção. Também neste campo, as construtoras chinesas estão a apostar no mundo lusófono, nomeadamente para a instalação de unidades de montagem de veículos e produção de componentes essenciais à mobilidade eléctrica, como baterias.

Brasil, um mercado-chave

Em território brasileiro, os veículos eléctricos gozam já de uma elevada taxa de penetração. O sector da mobilidade verde registou um novo recorde de vendas no ano passado, com 177.358 veículos ligeiros matriculados, um crescimento anual de 89 por cento, de acordo com a Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABEV).

 

A tendência de crescimento tem vindo a manter-se em 2025: a ABEV prevê que as vendas anuais devam ultrapassar a marca das 200 mil unidades. Nos primeiros oito meses do ano, já tinham sido matriculados 126.087 veículos eléctricos, de acordo com a associação.

 

“Esses números são significativos por vários motivos”, defende o Presidente da ABVE, Ricardo Bastos. “As vendas de electrificados continuam elevadas, mesmo diante de taxas de juro altas e do aumento do imposto de importação de veículos eléctricos” introduzido recentemente pelas autoridades brasileiras. Segundo refere o responsável, “confirmando-se o cenário mais provável, teremos um aumento das vendas acima de 20 por cento em 2025 sobre o ano anterior, o que representa um crescimento três vezes mais rápido do que a média do conjunto do mercado automóvel brasileiro”.

 

Uma das principais marcas chinesas de veículos eléctricos a operar no país é a BYD, sediada em Shenzhen, na província de Guangdong, vizinha de Macau. No ano passado, a empresa ultrapassou os 72 mil carros vendidos no Brasil, o que representa um aumento anual superior a 300 por cento. O sucesso não foi só de vendas: os modelos da marca receberam dezenas de galardões atribuídos pela imprensa especializada do Brasil.

 

A BYD está hoje presente em todo o país lusófono, com 190 lojas em operação. A fabricante, que chegou ao Brasil em 2014, lidera com larga vantagem o ranking de vendas de veículos eléctricos de tipo BEV – isto é, movidos a bateria –, com uma quota de mercado de vendas que, em Agosto, se fixou em 74 por cento.

 

“Somos a marca que mais cresce”, comenta Alexandre Baldy, Vice-Presidente Sénior da BYD Brasil. “O carro electrificado, quer seja 100 por cento eléctrico ou híbrido, já é uma realidade no país, uma tendência consolidada.”

 

A BYD está igualmente presente noutros segmentos do mercado brasileiro de transporte eléctrico. Desde 2021, quando entregou o seu primeiro autocarro articulado 100 por cento eléctrico no país, que a BYD tem vindo a ampliar a presença na área do transporte colectivo sustentável. Em 2023, a empresa alcançou a marca de 100 veículos em operação neste segmento no Brasil, tendo a meta de chegar a 500 unidades até ao final do ano.

 

Outra fabricante chinesa, a Great Wall Motors ou GWM, reconhecida pelos seus SUV, tem também vindo a ganhar destaque no país lusófono. A subsidiária brasileira da empresa atingiu em Julho deste ano um novo marco histórico: 3.930 veículos comercializados, o maior volume mensal desde o início das operações da marca no país, em Abril de 2023.

Pólo de produção

A estratégia das fabricantes chinesas de veículos eléctricos para o Brasil tem, entretanto, vindo a ganhar novas dimensões. O país passou a ser visto também como uma importante base de produção e montagem, visando servir o mercado de toda a América Latina. Nesse sentido, várias empresas chinesas estão a instalar fábricas de grandes dimensões em território brasileiro, o que lhes permite igualmente evitar o impacto das tarifas alfandegárias do Brasil sobre veículos eléctricos importados, além de servir para criar postos de trabalho qualificados e contribuir para o aprofundamento das relações económicas sino-brasileiras.

 

A aposta na produção no Brasil é apoiada pelas autoridades do país lusófono. Durante uma visita em Maio deste ano à capital chinesa, Pequim, o Presidente brasileiro, Lula da Silva, recordou que, na última década, a China saltou da 14.ª posição para o quinto posto no ranking de investimento directo na nação sul-americana.

 

“Para manter essa trajectória mutuamente benéfica, estamos a recuperar a capacidade de planeamento do Estado brasileiro”, afirmou na altura o governante. “O programa Nova Indústria Brasil é uma plataforma para que empresas chinesas e brasileiras possam construir novas parcerias”, acrescentou então Lula da Silva, em referência a uma política industrial lançada pelo seu Governo no início do ano passado, com o objectivo de impulsionar o desenvolvimento da indústria brasileira até 2033. A mobilidade sustentável é um dos vectores principais dessa agenda.

 

Pelo menos duas fabricantes chinesas de veículos eléctricos estão a instalar unidades de montagem de grandes dimensões no Brasil. A BYD está a investir 5,5 mil milhões de reais (mais de mil milhões de dólares americanos) no seu complexo de Camaçari, no estado da Bahia — uma mega-estrutura que ocupa 4,6 milhões de metros quadrados, o equivalente a 645 campos de futebol. Já a GWM inaugurou em Agosto a sua primeira fábrica em solo brasileiro, num evento que contou com a presença do Presidente Lula da Silva.

 

A decisão de avançar com a fábrica na Bahia foi anunciada pela BYD em Julho de 2023, reutilizando um antigo complexo industrial de uma outra fabricante estrangeira. As obras começaram em Março de 2024 e, em Julho deste ano, saiu da linha de montagem o primeiro veículo eléctrico da BYD produzido no Brasil.

 

A fábrica arrancou com uma capacidade anual de produção de 150 mil veículos, que pode duplicar no futuro. Quando todas as fases de expansão estiverem concluídas, o projecto deve gerar até 20 mil empregos directos e indirectos, de acordo com a empresa.

 

O investimento da BYD no Brasil inclui também o desenvolvimento de um motor híbrido “flex”, projectado e construído numa cooperação entre cientistas chineses e brasileiros. Os híbridos “flex” combinam um motor eléctrico com um motor a combustão interna, que pode ser abastecido tanto com gasolina como com etanol, o combustível verde mais emblemático do Brasil.

 

“A BYD é uma empresa feita por engenheiros e uma das que mais investem em investigação e desenvolvimento no mundo”, afirmou em Julho Stella Li, Vice-Presidente Executiva Global e Directora-Executiva da BYD Américas e Europa. “Toda essa tecnologia agora está presente na nossa fábrica brasileira”, acrescentou a executiva, aquando da apresentação do primeiro veículo produzido na unidade da Bahia.

 

Quanto à GWM, Agosto deste ano marcou a inauguração da sua fábrica em Iracemápolis, no estado de São Paulo, e o consequente início da produção nacional de veículos eléctricos no Brasil. A fábrica conta com uma área total de 1,2 milhões de metros quadrados e capacidade para produzir 50 mil veículos por ano. A unidade arrancou com 600 trabalhadores e deve gerar, até ao final do ano, cerca de 1.000 empregos directos.

 

Um dos objectivos, de acordo com a fabricante chinesa, é dar prioridade a fornecedores locais. No primeiro ano, componentes como pneus, vidros, bancos e peças eléctricas, entre outros, serão já obtidos através de parceiros no Brasil.

 

A GWM tem ainda prevista a criação de um centro de investigação e desenvolvimento no país lusófono, o primeiro da marca na América do Sul. O número de concessionários deve, entretanto, continuar a crescer: a meta é chegar a 130 pontos de venda em território brasileiro até ao fim do ano. Os investimentos totais da GWM no Brasil devem, de acordo com a empresa, atingir 10 mil milhões de reais até 2032.

“O Brasil é estratégico para a GWM. Com esta fábrica, não estamos apenas a produzir carros, mas também a gerar empregos de qualidade no país e a desenvolver tecnologia e inovação para todo o continente”, afirmou Mu Feng, CEO da GWM Global, aquando da inauguração da nova unidade de produção. “Queremos que o Brasil seja a nossa base para crescer na América Latina, com produtos pensados para o consumidor local e com o melhor da tecnologia global”, reforçou na altura.

 

A tendência tem atraído outros grupos chineses. A GAC – tal como a BYD, originária da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau – entrou no mercado brasileiro este ano, focada no sector da mobilidade eléctrica e preparando o terreno para dar início à construção de uma fábrica própria até ao final de 2026. O compromisso da GAC envolve um investimento total no país de 6 mil milhões de reais até 2028, associado a uma meta de vender 100 mil veículos no Brasil em cinco anos. Além disso, a empresa diz ter planos para construir uma rede nacional de carregamento de veículos eléctricos.

Crescer em Portugal

A expansão das marcas chinesas de veículos eléctricos faz-se sentir também na Europa, encontrando em Portugal um ponto estratégico. No final de 2024, o número de veículos eléctricos em circulação nas estradas lusas – considerando todas as categorias – era de 325.454 unidades, um aumento anual de 22 por cento, de acordo com a Associação de Utilizadores de Veículos Elétricos.

 

Na categoria de ligeiros de passageiros, as vendas de veículos 100 por cento eléctricos registaram um crescimento de 15 por cento em 2024 – o equivalente a 41.757 novas unidades. Terminaram o ano com uma quota de mercado de 19,9 por cento.

 

Dados da Associação Automóvel de Portugal mostram que a BYD é a marca que mais cresce no país no segmento dos veículos ligeiros 100 por cento eléctricos: em Agosto deste ano, tinha já saltado para a liderança mensal do ranking. A marca deu entrada no mercado luso há menos de dois anos, associando-se ao grupo local Salvador Caetano para a comercialização e distribuição de veículos. A parceria estende-se ao segmento dos camiões comerciais eléctricos.

 

A BYD não está sozinha. O grupo Salvador Caetano tem acordos de importação e distribuição com outras marcas chinesas de veículos eléctricos, como a Voyah, Dongfeng e M-Hero, todas sob a alçada da fabricante Dongfeng Motor Corporation. Além disso, a empresa portuguesa é ainda representante da também chinesa XPeng.

 

Tal como acontece com o Brasil, Portugal é visto pelo sector chinês de veículos eléctricos como tendo potencial para acolher bases de produção, por exemplo, na área dos componentes automóveis. Neste âmbito, destaca-se o investimento de dois mil milhões de euros (cerca de 2,4 mil milhões de dólares americanos) anunciado pela chinesa CALB para a construção, na cidade portuguesa de Sines, de uma fábrica de baterias de lítio para automóveis eléctricos. A unidade deve entrar em funcionamento até 2028, criando 1.800 empregos directos.

 

De acordo com uma nota do Governo português, o projecto da CALB – oficialmente lançado em Fevereiro deste ano – “terá um impacto significativo na economia portuguesa”, tendo sido reconhecido como Projecto de Interesse Nacional. “Num contexto de transformação e transição do sector automóvel à escala europeia e mundial, este investimento vem dotar Portugal de competências e ‘know-how’ na cadeia de valor dos veículos eléctricos”, referem as autoridades lusas.

PALOP no horizonte

Em diversos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), como Angola, Cabo Verde e Moçambique, a transição para uma mobilidade verde começa a ganhar prioridade na agenda pública. Tal entrelaça-se com a estratégia mais ampla das fabricantes chinesas de reforçar a sua presença em África, parte da política de exportações verdes promovida pelas autoridades da China.

 

Em Angola, têm sido dados passos como a criação de legislação para regular a mobilidade verde e a introdução de benefícios fiscais para a importação deste tipo de veículos. As autoridades nacionais já se comprometeram publicamente no sentido de liderar através do exemplo, apostando na aquisição gradual de veículos eléctricos aquando da renovação da sua frota. Tal visa, por um lado, criar procura que estimule o desenvolvimento de uma rede de importação e venda de veículos eléctricos e, por outro, criar incentivos à instalação de pontos de carregamento.

 

Várias marcas automóveis chinesas já dispõem de presença em Angola. Embora muitos dos modelos disponíveis ainda diga respeito a veículos a combustão interna, a oferta de opções verdes está a subir. Um exemplo recente é o da marca chinesa DFSK, que iniciou operações em Angola este ano, lançando modelos eléctricos que a empresa diz serem adaptados à realidade local.

 

Já Cabo Verde definiu como objectivo alcançar a fasquia de 25 por cento de veículos eléctricos no parque nacional até 2030. Para isso, o Governo tem vindo a implementar várias medidas: foi recentemente concluída a instalação de uma rede pública de carregamento de veículos eléctricos, com 40 postos, cobrindo todas as ilhas habitadas de Cabo Verde. No ano passado, os veículos eléctricos representaram já cerca de 8 por cento de todas as novas matrículas de veículos ligeiros no arquipélago, de acordo com as autoridades.

 

Em Moçambique, o sector empresarial é uma das forças motrizes da adopção de veículos verdes. A empresa Cimentos de Moçambique revelou, em Maio deste ano, ter introduzido camiões basculantes eléctricos, bem como pás mecânicas, na sua frota de apoio, dedicados ao transporte e manuseamento de matérias-primas. Outra empresa moçambicana, a MetroBus, anunciou, em Setembro, a chegada do seu primeiro autocarro totalmente eléctrico para transporte urbano. Tratou-se de um veículo articulado de 18 metros, fabricado pela China Railway Rolling Stock Corporation, com capacidade para 140 passageiros e uma autonomia de até 500 quilómetros por carga.

 

Numa outra vertente, as autoridades moçambicanas querem também estimular a presença do país nas cadeias de valor associadas à produção de veículos eléctricos. Tal passa por aumentar a produção de grafite destinada a baterias, uma área onde o país conta com importante investimento chinês.