O esforço da China para incentivar a adopção e o uso da moeda digital pode servir de referência aos Países de Língua Portuguesa, com Macau a poder dar uma ajuda
A China tem investido de forma significativa na digitalização financeira, incluindo no desenvolvimento de uma moeda digital oficial, denominada e-CNY, e no uso de pagamentos móveis. Os cidadãos chineses utilizam já amplamente plataformas de pagamento móvel para diversos fins, com a consultora iMedia Research a referir num relatório que, em Junho de 2024, aproximadamente 953,8 milhões de indivíduos na China utilizavam activamente diversos serviços de pagamento móvel.
A China foi pioneira na criação da versão digital de moedas fiduciárias, com o esforço do país a envolver directamente o Banco Popular da China na emissão de contas individuais para os cidadãos. O e-CNY já foi integrado em vários sectores, com alguns comerciantes a aceitá-lo e a sua implementação em sistemas de transporte público a acontecer em grandes cidades, como Pequim.
A Moeda Digital de Banco Central (CBDC, na sigla em inglês) é descrita como uma forma digital do dinheiro fiduciário de um país ou região, regulamentada pelo banco central ou autoridade monetária. Ao contrário das criptomoedas privadas comuns, a CBDC é uma moeda com curso legal em formato digital.
As autoridades chinesas vêem o uso de uma moeda digital centralizada como algo que pode facilitar transacções transfronteiriças com o exterior, incluindo com os Países de Língua Portuguesa, e como uma medida que pode reforçar a utilização do renminbi nas transacções globais.
Hong Kong já iniciou a fase de testes da sua própria moeda digital, o e-HKD, enquanto Macau lançou, em Dezembro de 2024, o protótipo da nova pataca digital, ou e-MOP, marcando os primeiros passos de uma moeda digital centralizada na Região Administrativa Especial de Macau (RAEM).
O protótipo de Macau
De acordo com a Autoridade Monetária de Macau (AMCM), a primeira fase da e-MOP – que deverá estar concluída este ano – consiste no desenvolvimento das infra-estruturas e do sistema central. A segunda fase envolve testes em ambiente regulatório controlado com o sistema protótipo, para explorar as situações de aplicação da e-MOP e avaliar os diversos tipos de riscos.
Paralelamente, serão também concretizados trabalhos em termos de legislação complementar, formulação de directivas de supervisão relevantes, introdução de novos operadores e construção de um centro de dados adicional.
A terceira fase reside na realização de um teste público em grande escala, através do qual serão incluídos gradualmente cenários simulados adicionais, possibilitando uma integração ordenada da e-MOP nas situações de aplicação de pagamentos do público em geral.
De acordo com Chan Sau San, Presidente do Conselho de Administração da AMCM, o objectivo é que a e-MOP possa tornar-se numa importante ponte para a cooperação financeira e económica com outros países e regiões, sobretudo com os Países de Língua Portuguesa, alguns dos quais já estão a desenvolver as suas próprias moedas digitais.
A AMCM referiu também que iria empenhar-se em apresentar aos países lusófonos os padrões técnicos da China no domínio das moedas digitais através do exemplo da e-MOP e, deste modo, apoiar a investigação e o seu desenvolvimento nos países de língua portuguesa.
Presente no lançamento do protótipo da e-MOP em Dezembro, o Governador do Banco Nacional de Angola, Manuel Tiago Dias, afirmou, em declarações aos jornalistas, que Angola está numa fase inicial do desenvolvimento da moeda digital, procurando inspirar-se na experiência de Macau para lançar a sua própria moeda digital.
Na mesma ocasião, a Administradora do Banco de Cabo Verde, Antónia Lopes, garantiu que o seu país pretende aprofundar a cooperação com Macau no domínio de pagamentos móveis, afirmando que a RAEM poderia ser um bom exemplo a seguir por Cabo Verde neste sector.
Cooperação financeira
No âmbito da cooperação entre a China e os Países de Língua Portuguesa, a economia digital tem sido um dos temas em destaque nas discussões do Fórum de Macau, com o organismo a discutir novas áreas de colaboração, com ênfase crescente na tecnologia e nas finanças digitais.
No Plano de Acção para a Cooperação Económica e Comercial (2024-2027), assinado em Abril de 2024, aquando da 6.ª Conferência Ministerial do Fórum de Macau, os países participantes acordaram em apoiar o reforço da cooperação nos domínios da economia digital, incluindo projectos nas áreas da inovação tecnológica e dos serviços financeiros.
Em Setembro de 2024, Macau acolheu a “2.ª Conferência dos Governadores dos Bancos Centrais e dos Quadros da Área Financeira entre a China e os Países de Língua Portuguesa”. Organizada pela AMCM, o evento reforçou o papel da RAEM como plataforma de cooperação na área dos serviços financeiros entre a China e os países lusófonos.
O projecto da moeda digital dos bancos centrais foi um dos tópicos pertinentes debatidos durante o evento.
Embora ainda não haja acordos concretos sobre moedas digitais, o interesse em explorar esta área para fortalecer a cooperação económica é cada vez maior.
O Banco de Portugal, entidade responsável pelo sistema financeiro português, está, por exemplo, a criar um guião para modernizar os pagamentos em Portugal – chamado “Estratégia Nacional para os Pagamentos de Retalho 2025” –, que deverá estar concluído até final deste ano. Porém, a moeda digital em Portugal será o euro digital, que, se vier a ser emitido, será a moeda de retalho do Eurosistema. Tal como o numerário, o euro digital poderá ser utilizado pelo público em geral nos pagamentos do dia-a-dia, mas apenas de forma digital.
Outros países lusófonos estão já mais avançados no projecto da moeda digital, como é o caso do Brasil, com o real digital, denominado DREX.
Em desenvolvimento pelo Banco Central do Brasil desde 2020, o DREX obedece a princípios e regras previstos na legislação brasileira e, após a fase de testes, será emitido através de uma plataforma digital operada pelo próprio Banco Central.
Longo caminho a percorrer
O Economista-Chefe do Banco de Fomento Angola, José Miguel Cerdeira, considera “incrível” o avanço dos pagamentos móveis na China e destaca que Angola está a dar passos significativos para modernizar o seu ecossistema financeiro. No entanto, alerta que a falta de experiência de alguns agentes económicos e as dificuldades no acesso a dados móveis ainda são desafios a superar.
“O universo de pagamentos móveis na China é verdadeiramente impressionante. Mesmo em comparação com a Europa, que já evoluiu bastante, a China está muito à frente. Angola ainda tem um longo caminho a percorrer, mas está a fazer progressos”, afirmou Cerdeira.
Em Angola, duas iniciativas recentes estão a impulsionar a digitalização financeira. A EMIS - Empresa Interbancária de Serviços implementou o MULTICAIXA Express, um sistema que permite, com recurso ao telemóvel, fazer compras em lojas físicas e online. Além disso, o Banco Nacional de Angola lançou o sistema KWiK, que permite transferências instantâneas sem necessidade de IBAN, possibilitando a interoperabilidade entre carteiras digitais e contas bancárias.
Apesar dos avanços, Cerdeira identifica dois grandes desafios. “A primeira dificuldade é a falta de experiência de alguns actores na construção deste ecossistema, incluindo empresas e operadores do mercado informal. No entanto, isso resolve-se com o tempo e aprendendo com experiências de outros países, como a China e outros mercados africanos”, explicou o mesmo responsável.
A segunda dificuldade, porém, é mais complexa. “O acesso a dados móveis e o seu custo ainda são um grande entrave. Em Luanda, por vezes, já representa um problema, mas fora da capital a situação é ainda mais desafiadora”, refere Cerdeira, que se demonstra optimista. “Tenho esperança de que o futuro traga bons desenvolvimentos”, afirma.


